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50 Anos de Let It Be

O último disco lançado pelos Beatles completa meio século de existência.

Apesar de ser o último trabalho de estúdio lançado – o único posterior ao anúncio oficial de dissolução da banda, as gravações dele foram realizadas antes das de Abbey Road, que no entanto foi lançado antes (setembro de 1969).

Let It Be é sem dúvida um dos álbuns mais polêmicos dos Fab Four, já que despertou fortes reações tanto por seus defensores quanto pelos detratores.

As críticas, de maneira geral, focam na produção de Phil Spector, que segundo esta visão, teria passado do ponto nas orquestrações. Por este preciso motivo, o disco foi relançado em 2003 sem os arranjos sinfônicos, apresentando as mesmas canções de forma mais crua, e por isso foi batizado de Let It Be… Naked.

Capa do disco Let It Be... Naked, lançada por Paul em 2003, sem os arranjos de Phil Spector
Capa de Let It Be… Naked, lançado em 2003

Let It Be se destaca por vários fatores, dentre eles, o fato de contar com a luxuosa presença de Billy Preston (tanto no álbum quanto no documentário), pianista/tecladista que também tocou com os Rolling  Stones (dentre outros artistas), e que fez por merecer as alcunhas de “Quinto Beatle” (ou “Black Beatle”) e “Sexto Stone” (embora este título também seja bastante utilizado para se referir a Ian Stewart).

O álbum também traz a última gravação realizada pelos Beatles, a faixa I Me Mine. Embora todos os integrantes estivessem presentes na execução desta música no documentário, a versão que acabou entrando no disco foi uma posterior, realizada em estúdio, e que não contou com a participação de John Lennon.

Esta gravação é posterior inclusive às de Abbey Road, que embora lançado antes, é o último álbum gravado pelos quatro rapazes de Liverpool.

Outro detalhe interessante é que o disco começou a ser gravado nos estúdios Twickenham, mas foi concluído no estúdio da Apple -Selo fonográfico que fazia parte da Apple Corps, empresa fundada pelos integrantes da banda. Foi na  laje do prédio da Apple que foi realizado o Rooftop Concert.

Lançado em 08 de maio de 1970 junto com um livreto, a 1 libra mais caro que os demais discos, teve inicialmente vendas bem modestas. Foi relançado em 06 de novembro sem o pequeno livro, iniciativa tardia que não rendeu o impulso de vendagem esperado.

Capa do último disco lançado pela banda britânica The Beatles
Capa do álbum Let It Be, último disco lançado pela banda

 

CONTEXTO

Depois de quase uma década juntos, os Fab Four começavam a dar sinais de cansaço. As gravações do Álbum Branco tinham ocorrido em clima bem diferente dos anteriores. Com as relações pessoais começando a se desgastar, as composições foram trabalhadas de maneira individual: Cada um apresentava a canção já pronta, e os demais integrantes acabavam servindo apenas como banda de apoio na execução das canções, sobrando pouco espaço para colaborações criativas e parcerias (ainda que a maior parte das músicas continuassem a ser atribuídas à dupla Lennon/McCartney, por questões comerciais).

O conceito do álbum surgiu da ideia (emanada da cabeça de Paul) de que eles deveriam dar meia-volta no caminho das experimentações em estúdio e voltar ao rock mais simples e espontâneo do começo da careira, e por isso o projeto originalmente se chamaria Get Back. Ele envolveria a gravação do disco e também de um documentário sobre os ensaios para possíveis novas apresentações ao vivo – lembrando que a banda havia deixado de fazer shows em 1966, se concentrando na gravação dos discos a partir de então.

Em algum momento no meio do caminho, o nome original foi abandonado em favor do novo nome, Let It Be, e o tal documentário registrou sua última performance ao vivo no hoje lendário Rooftop Concert, realizado em janeiro de 1969. Parte deste material – alguns diálogos, inclusive – foi incorporado ao disco. Mas estava claro que havia algo de errado no funcionamento interno da banda. Harrison chegou a abandonar as gravações por uma semana, dizendo que gostaria de deixar o grupo, mas foi persuadido a voltar e continuar o trabalho. 

 

Rooftop Concert: Os 4 rapazes de Liverpool em sua última apresentação ao vivo

 

Parte da insatisfação de Harrison provinha precisamente da decisão de voltar a se apresentar ao vivo, já que o mais introspectivo dos Beatles andava cansado das pressões da fama e do show business, e desejava permanecer no caminho de se dedicar a trabalhar em estúdio e produzir discos. De modos que as vontades dele e de Paul entraram em rota de colisão. O relacionamento entre eles foi ainda abalado pelo ressentimento que George sentia dos “pitacos” que Paul insistia em dar em suas partes de  guitarra. Esta discussão e todo o clima interno de tensão estava sendo captado pelas câmeras que registravam os ensaios para o documentário.

Os conflitos internos fizeram com que as gravações do restante do disco se prolongassem por mais de um ano, sendo concluídas apenas no início de 1970. A morte de Brian Epstein (seu empresário durante a maior parte de sua carreira), na segunda metade de 1967 abalara a todos e contribuíra para deixar o clima mais pesado a partir de então. Para piorar, houve rusgas entre os integrantes sobre a escolha do novo empresário, já que Paul insistia que seu sogro (Lee Eastman) e seu cunhado assumissem este papel, ideia que não entusiasmava os demais integrantes. McCartney perdeu esta queda de braço, e Allen Klein ocupou o posto.

Esta briga acabou culminando na decisão de Paul de sair da banda, anunciada por ocasião do lançamento do primeiro disco solo de Paul (McCartney, cuja análise você pode ler aqui). Decisão que enfureceu Lennon, já que o mesmo já havia comunicado aos demais que sairia da banda, mas fora convencido a guardar a decisão em segredo até o lançamento do álbum.

Com a saída de Paul, os demais integrantes tomaram as rédeas do projeto, deixando George Martin (que havia produzido os grandes clássicos da banda) em segundo plano. Ele trabalhava em conjunto com Glyn Johns (que atuou meio como produtor, meio como engenheiro de som). Glyn chegou a fazer duas mixagens do disco, que foram recusadas pelos Fab Four, o que resultou na entrada de Phill Spector no projeto, assumindo a produção. 

Conhecido pelo seu padrão de “Muro de Som” (Wall of Sound), Spector subverteu a concepção original de um disco mais cru, incluindo arranjos e orquestrações um tanto o quanto rebuscadas – o que pareceu agradar a John, George e Ringo, mas aborreceu Paul McCartney, que a esta altura não podia fazer grandes coisas quanto a esta decisão.

Em uma de suas últimas entrevistas concedidas, Lennon declarou à Playboy em 1980:  “demos a ele (Phil Spector) a pior quantidade de porcarias de gravações bem ruins, com um sentimento muito feio nelas, e ele foi capaz de fazer algo bom daquilo”.

A constante e insistente presença de Yoko durante as gravações não contribuiu em nada para amenizar as tensões, ao contrário, agravando-as. Embora Paul seja o que mais tenha se aborrecido com a presença da esposa de John, George também se sentia frustrado com a situação, tendo chegado a bater boca com Yoko.

Embora não tenha o brilho e a genialidade de seu antecessor, Abbey Road, Let It Be traz momentos de beleza pungente e figura como um dos grandes álbuns da discografia dos Beatles e do próprio rock – se não pelo conteúdo artístico, ao menos pelo valor histórico.

Cena aérea do último show dos Beatles, nas gravações do documentário Let It Be – que originalmente se chamaria Get Back

 

FAIXA A FAIXA

Two Of Us – Cantada com harmonia vocal dividida entre Paul e John, com destaques para os violões gravados pela dupla. Harrison toca a linha de baixo na guitarra.

Dig A Pony – É uma das 4 faixas gravadas ao vivo no Rooftop Concert que entraram no disco, sendo a junção de duas composições de John, que se chamavam All I Want Is You e Dig a Pony. Conta com Billy Preston no órgão.

Across The Universe – Balada composta por John, cuja gravação original era mais crua e rápida, tendo sido desacelerada por Phill Spector (o que alterou o timbre da voz de John), que também incluiu arranjos de cordas. A versão original pode ser ouvida no disco Past Master Volume Two.

I Me Mine – A primeira das únicas duas canções de Harrison gravadas neste disco, havia incialmente sido menosprezada por John e Paul – algo recorrente e de que Harrison se ressentia. Muitos inclusive interpretam a canção como um recado à dupla Lennon/McCartney. Além do violão e da guitarra solo, Harrison também registrou o órgão desta faixa, que é uma das que receberam as orquestrações de Spector.

Dig It – Uma das faixas mais curtas com seus 50 segundos (embora a gravação original tivesse mais de 12 minutos), é mais uma brincadeira do que uma composição formalmente acabada.

Let It Be – Uma das belas baladas pertencentes à nova safra de canções compostas por Paul, se tornou um dos grandes clássicos do quarteto. A intensidade dramática da composição se deve em parte à morte da mãe de Paul e ao próprio momento que ele vivia com a banda. Conta com nada menos que dois solos magistrais da guitarra de Harrison, o segundo deles tocado por cima do refrão final. Com Paul ao piano, o baixo ficou a encargo de John.

Maggie Mae – Com apenas 40 segundos de duração, trata-se de uma breve releitura de uma tradicional canção de Liverpool que versa sobre um marinheiro e uma prostituta.

I’ve Got A Feeling – Outra das faixas gravadas no telhado da Apple, é um dos pomos da discórdia entre George e Paul, com este último insistindo em opinar sobre a forma como o primeiro registrava a guitarra, como havia feito em 1968 na gravação de Hey Jude. Paul faz a voz principal nas duas primeiras estrofes, e John faz nas demais.

One After 909 – Composta por John e Paul no estilo skiffle quando eram ainda adolescentes, nos anos 50, é outra das faixas gravadas no Rooftop Concert e que contam com Billy Preston no órgão.

The Long And Winding Road – Uma das mais belas faixas gravadas pela banda, e uma onde mais se destacam os arranjos grandiloqüentes de Phil Spector, com uma orquestra (composta por 35 músicos) e coral (com 14 vozes) contribuindo para o toque épico. Assim como em Let It Be, Paul tocou o piano e John, o baixo.

For You Blue – A segunda das composições de Harrison presentes no disco, com arranjo típico de um blues de 12 compassos. A faixa se inicia com uma das tiradas de Lennon, que afirma que a Rainha diz não a membros maconheiros do FBI, e traz George no vocal principal.

Get Back – A faixa que originalmente batizaria o disco, já que o conceito inicial era voltar ao clima dos primórdios da banda. É uma das 3 versões gravadas ao vivo na laje da Apple. O compacto lançado traz uma versão gravada em estúdio que conta com um verso a mais. Muitos interpretaram esta música como um recado para Yoko, inclusive Lennon chegou a declarar ter percebido os olhares de Paul para sua esposa durante a gravação.

O disco se encerra com uma declaração bem-humorada de John (gravada no Roof Top Concert): “Eu gostaria de agradecer em nome do grupo e de todos nós. Espero que tenhamos passado na audição”, arrancando risadas dos poucos privilegiados presentes.

Ouça o álbum Let It Be no Spotify.

Leia nossas outras análises de discos clássicos do rock.

FONTES

Livros:

The Beatles Anthology – By The Beatles (versão original em inglês publicada pela Chronicle Books)

The Beatles, a Biografia – Bob Spitz (Editora Larousse)

The Beatles – Hunter Davies (versão original em inglês publicada pela editora Norton)

Can’t Buy Me Love – Jonathan Gould (Editora Larousse)

The Beatles – Gravações Comentadas & Discografia Completa (Editora Larousse)

Sites:

Pitchfork (review do álbum)

Billboard (review do álbum)

Rolling Stone (review do álbum)

All Music (review do álbum)

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Um comentário sobre “50 Anos de Let It Be

  1. Ainda que haja muito material sobre os Beatles, fiquei impressionada com a riqueza de conteúdo e clareza. Adorei seu estilo. Maravilha!

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