O recente lançamento da autobiografia da Tia Rita deixou muitos críticos em polvorosa e com os cabelos em pé. O ponto mais levantado por grandes expoentes da crítica musical – cuja importância Rita relativiza e ridiculariza – é o ressentimento que Rita destila pelos ex-companheiros de Mutantes.
Seria engraçado se não fosse trágico. Como podem esperar que ela demonstre simpatia por músicos que não apenas a expulsaram da banda que ajudou a fundar, como também jamais deram a ela os devidos créditos, não perdendo uma oportunidade de espinafrar a – muito mais famosa – ex-parceira musical? Dãã.
Pra começar, em que pese a extraordinária obra musical mutantesca, sem dúvida revolucionária, há que se dizer que os Mutantes tem sido largamente superestimados por um jornalismo musical preguiçoso e adepto do mais do mesmo. Muitas vezes, em benefício do reconhecimento da autoridade artística dos irmãos Dias, as análises tendem a enfatizar suas contribuições individuais e a esquecer do contexto cultural – e tecnológico – que possibilitou tais aventuras musicais.
E neste sentido, a narrativa de Rita, se omite informações técnicas, revela em toda sua riqueza o contexto cultural sob o qual viviam os jovens paulistanos na década de 60, sendo um testemunho revelador de como esta juventude foi exposta às revoluções culturais, sociais e políticas trazidas pelos Beatles e pelo rock em geral.
Cumpre ressaltar que, se a corrente majoritária dos analistas se envereda pelo caminho da crítica rasa – e fácil – à obra, algumas perspectivas individuais problematizaram o viés de tais críticas. E se posso concordar com a constatação de que Rita passa meio por cima dos aspectos técnicos das gravações e do processo criativo de composição e arranjo, também posso entender que isso é mais uma opção que uma falha.
Embora afeita a novidades tecnológicas, o perfil artístico de Rita sempre foi realmente menos técnico e mais ligado ao papel simbólico das canções. E neste sentido, a relação entre letra e melodia, principal matéria prima do compositor, evidentemente adquire mais peso e relevância que os arranjos e soluções técnicas dadas às canções.
Claro que algumas omissões não deixam de chamar atenção. Devido ao desgastado relacionamento com o guitarrista Luiz Carlini, ela sequer menciona o solo magistral que ele realizou em Ovelha Negra, que certamente ajudou a música a alcançar o status de hit e de obra de arte. Mas também neste caso é fácil entender a postura de Rita: Carlini, grande guitarrista, é um dos principais representantes da ala que Rita chama de “turma do rock com culhão”.
Rita Lee nega os boatos de que o músico seria o pai biológico de seu primogênito Beto, e a despeito das evidências contrárias (sendo a maior delas a absurda semelhança física entre os dois), há que se respeitar a narrativa da autora, sujeita da própria história. Inclusive porque o peso conferido à paternidade biológica apenas corrobora o machismo e misoginia contra os quais Rita tanto lutou. Roberto de Carvalho criou – junto com Rita, claro – aquele menino (hoje guitarrista dos Titãs), e portanto, é seu pai. Ponto.
Alguns poucos – ao menos que eu tenha notado – erros de revisão não comprometem a leitura, mas chama atenção que alguns nomes importantes tenham sido grafados de forma equivocada. O principal exemplo são as citações ao genial Lanny Gordin, que tem a grafia alterada para Lenny Gordon. Rita não tem obrigação de saber soletrar o nome de todas as muitas personagens que aparecem no livro, mas sem dúvida a revisão poderia ter sido mais cuidadosa.
Em relação ao estilo, a acusação de um certo tom adolescente na narrativa mais a engrandece que a diminui. A leitura adquire leveza e agilidade, permitindo que se aprofunde na biografia de Rita sem se perder em inúmeros dados. A autora cria uma quase familiaridade com sua vida pessoal ao falar sobre os membros de sua família, os muitos bichos inclusos. A linguagem coloquial traz gírias e expressões que Rita usa e abusa na sua fala oral, como o “Dãã” pra tirar um sarro de decisões (às vezes dela própria) não muito inteligentes e conclusões óbvias.
Ela também se utiliza bastante do recurso de utilizar apelidos para se referir a certos personagens controversos de sua trajetória. Mas ao contrário do que foi apontado por aí, tal recurso não chega a confundir o leitor ou impedir sua compreensão – ao menos não o leitor de inteligência ao menos mediana. Em alguns casos os apelidos podem ter função de humor, mas fica claro que esta tática foi utilizada para poupar a cantora de possíveis processos judiciais. Dãã.
Provavelmente pelo mesmo motivo, Rita evita tocar no assunto da confusão com a polícia num de seus últimos shows. O pequeno capítulo que trataria do tema foi auto-censurado, com tinta preta sobre as palavras, emulando uma censura externa. Claro que esta postura em si já carrega uma enorme carga crítica à forma como o episódio vem sendo tratado.
Por falar no cumprimento do capítulo, destaca-se que o interessante expediente de mini-capítulos é utilizado no livro inteiro, facilitando sua leitura em doses. Outra peculiaridade é o truque de usar o personagem de um fantasminha fazendo as vezes do que seria um “Ghost Writer Revisor”. Ela própria destaca que várias autobiografias são na verdade escritas por ghost writers, e como ela abdicou deste recurso, a figura do fantasminha revelou-se uma ótima artimanha para que correções factuais – de data, principalmente – não prejudicassem o texto original ou sua fluência.
As fotos são uma atração à parte, boa parte delas retiradas do acervo pessoal da compositora. Elas ilustram o surpreendente relato de Rita, que no decorrer do livro traz diversas revelações sobre sua vida pessoal. Todas as alegrias e agruras se fazem presentes: Do estupro na infância à saída dos Mutantes, do “renascimento” artístico à descoberta do amor, das orgias e porra-louquices às internações. Sua relação e interação com outros artistas, nacionais e internacionais, também são examinadas.
Rita Lee Jones, 69 anos incompletos, traz assim um vívido panorama de sua trajetória artística de meio século, que a consagrou como a cantora que mais vendeu discos no Brasil. E se o verdadeiro espelho do artista é sua criação, este livro vem se somar à sua preciosa discografia. A obra de Santa Rita de Sampa em sua mais completa tradução.

Título: Rita Lee – Uma Autobiografia
Autora: Rita Lee
Editora: Globo Livros
Páginas: 294
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