Melhor com notas que com palavras, Joe Perry decidiu escrever sua biografia a quatro-mãos. Para realizar tal empreitada, ele recrutou uma fera das biografias musicais, David Ritz.
Ritz também é responsável pela autobiografia de B.B. King, dentre outros artistas. Uma curiosidade adicional sobre Ritz é o fato dele também ser compositor. Ele é co-autor (ao lado do intérprete Marvin Gaye) do hit absoluto Sexual Healing.
Como já se tornou padrão no ramo das biografias de rock, o livro vem recheado de fotos ilustrando personagens e passagens marcantes narrados pelo biografado. Difícil afirmar, mas é bem provável que o tradutor toque algum instrumento, tenha um conhecimento sobre música ou tenha tido auxílio técnico para traduzir coisas referentes ao fazer musical e instrumentos.
A suposição se ancora no fato de ser uma das poucas biografias de guitarristas a não conter erros gritantes de tradução ou má-interpretação de termos e explicações técnicas envolvendo o universo da guitarra. Mais um ponto para esta bem cuidada edição da editora Benvirá.
Neste quesito, guitarristas, entusiastas e geeks da música vão se deliciar com o apêndice. Técnicos de guitarra que trabalharam com Joe ao longo dos anos dão depoimentos sobre seu equipamento em cada época, detalhes de como procediam para montar e desmontar, etc.
Provavelmente não interesse à maior parte das pessoas, mas é um adendo mais que bem vindo, uma das poucas biografias de guitarristas a trazer este capricho. A edição conta com 416 páginas, sendo as primeiras 389 dedicadas à introdução, agradecimentos e à narrativa em si.
Um guitarrista introspectivo
Joe reconhece que sua personalidade tende à introspecção, e que usa uma espécie de escudo contra algumas emoções, e isso é perceptível na leitura do livro. Esta relativa frieza ao narrar alguns episódios de sua vida fica patente, principalmente em contraste com a autobiografia de Steven Tyler, que tende a demonstrar suas emoções de forma mais efusiva.
Mas nem por isso a leitura deixa de ser emocionante. Mesmo bancando o durão, algumas passagens de sua vida foram significativas o bastante para que ele assuma isso, e consiga – com a ajuda de Ritz – traduzir o sentimento em palavras.
Neste sentido, destaque para para as passagens em que ele comenta sua relação com o pai, que nem sempre foi exatamente fácil. Até porque sua personalidade tinha muito da de seu pai, que era filho de um imigrante português originário da Ilha da Madeira. (Pois é, o sobrenome original dos Perry era – quem diria – Pereira).
Um dos momentos mais belamente simbólicos desta relação se dá quando Perry conta sobre uma das últimas vezes em que viu o pai com saúde. O pai estava com um amigo, visivelmente orgulhoso de seu filho rockstar, que estava na crista da onda, com turnês bem sucedidas, três discos de ouro e dois sucessos entre as mais tocadas. Um dos maiores clássicos da banda, Toys In The Attic, havia sido lançado a pouco e estava tendo uma vendagem extraordinária.
Para um menino que tinha TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – que na época não tinha este nome nem havia sido diagnosticado), e não conseguia mostrar resultados escolares satisfatórios aos pais, que valorizavam os estudos, ver o pai orgulhoso por seus feitos no alto de seus 25 anos de idade foi uma importante vitória.
Uma das coisas mais bacanas deste tipo de livro é poder encontrar facilmente – no Youtube ou Google – as diversas referências a personagens, discos, shows e músicas. Ouvir a discografia lendo os comentários de um de seus principais autores. Encontrar as referências visuais e auditivas. Este trabalho é um banquete neste sentido, já que Mr. Joe Fucking Perry entende um bocado do riscado do Rock’n’Roll, e vai destilando seu conhecimento à medida em que vai narrando os principais eventos de sua vida. Até porque, Perry criou ou viveu alguns destes episódios épicos da história do rock.
Irmãos em armas
Uma constatação interessante – embora talvez um pouco triste – tirada da leitura desta biografia é o fato de que os excessos – de todas as ordens – cobraram seu preço, principalmente no que se refere ao relacionamento entre seus integrantes, particularmente entre Steven e Joe.
Perry chega a dedicar um capítulo inteiro – ainda que curto, é verdade – a Tyler, intitulado “Irmãos”. Em vários momentos do livro, tece loas à capacidade vocal de seu parceiro, a seu desempenho no palco e à sua luta para fazer o Aerosmith decolar e se manter no ar.
Mas ao mesmo tempo, deixa claro que este relacionamento fraternal evocava “Caim e Abel Feelings”, e as constantes mudanças de humor de Steven, mais oscilantes que o gráfico de um equalizador, deixaram um rastro de ressentimento em Joe.
Quase como uma espécie de vingança por décadas sendo passado pra trás e por vezes sendo tratado como um mero “coadjuvante” pelo “personagem principal”, Perry não deixa barato e revela diversas maquinações, intrigas e planos mirabolantes criados por Steven ao longo dos anos.
Não é uma mera coincidência que esta fissura interna traga ecos do relacionamento Jagger-Richards (e nem que Keith tenha usado o mesmo expediente de revelar estas fissuras em sua auto-biografia). Primeiro, porque os Stones representam o arquétipo da grande banda de rock, o grande referencial para Perry, Tyler e companhia. E segundo que as brigas de ego entre guitarristas e vocalistas é um clichê tão antigo quanto o próprio rock’n’roll.
Quanto ao tratamento dado à narrativa por David Ritz, nenhum reparo. O cara sabe o que faz, é um craque em ouvir e interpretar a história dos músicos, e montar o quebra-cabeças da linha cronológica da vida dos biografados. Um recurso que ele utiliza bastante, assim como na biografia que escreveu sobre B.B. King, é de em alguns momentos repetir alguma informação dada anteriormente.
Como ele lança mão deste recurso com elegância e bom senso, não fica repetitivo, até porque quando ele repete algo, o faz de forma diferente e num momento diferente do livro. Este truque é interessante porque aproxima a linguagem escrita da linguagem oral, onde tendemos a nos repetir às vezes, quando contamos uma história. Principalmente levando em conta que se trata da história de uma vida, e não de uma qualquer, mas da vida de um astro do rock.
Imagino ainda que o autor opte por este método para ressaltar aspectos importantes para o próprio biografado, além de destacar as linhas mestras da trajetória. Um co-autor craque no assunto, um biografado com peso artístico de grande relevância e uma edição bem cuidada fazem deste trabalho essencial aos fãs do Aerosmith e uma ótima leitura a todos que tenham interesse na história do rock.
Título: ROCKS – Minha vida dentro e fora do Aerosmith
Autor(es): Joe Perry com David Ritz
Editora: Benvirá